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30.11.09

A Mudança

Por Silvio T Corrêa

Escrito em 2004

Raffaello Almeida sempre foi um excelente profissional. Com o próprio esforço, fez carreira dentro de uma multinacional, partindo de uma posição de auxiliar de escritório, já que naquela época eram raros os atuais programas de estágio, que garimpam os candidatos promissores.

Fluente em quatro línguas, mestrado em Stanford, porte atlético, praticante de esportes e voraz leitor, Raffaello estava a um passo de tornar-se o principal executivo da empresa.

Luzia Amarello, também mestre por Stanford, onde conheceu Raffaello, abriu mão dos seus sonhos profissionais para tornar-se dona de casa e mãe compromissada. Isso foi decidido por ocasião do nascimento do primeiro filho, que hoje está tentando o vestibular para a carreira de médico. O segundo filho do casal, um ano mais novo, pretende seguir a carreira de ator.

Luzia, já com os filhos crescidos e praticamente livres da “barra da saia”, decidiu, para ocupar o grande tempo livre, escrever. Como não passava de um hobby, não mostrava a ninguém os seus textos. Nem mesmo Raffaello sabia dessa atividade de Luzia.

À noite, quando Raffaello chegava mais tarde, o que acontecia de três a quatro vezes por semana, Luzia debruçava-se sobre o seu notebook e escrevia sem descanso.

Ele chegava cansado pelos problemas que tinha que resolver na empresa, mas procurava não comentar em casa, na ilusão do sexo frágil. Luzia procurava se inteirar dos problemas do marido, mas era em vão.

No passar dos meses, quando Luzia percebeu, já estava com mais de cem páginas escritas de um romance ainda sem nome. Começou a considerar a possibilidade de terminar e tentar publicar. Enquanto pensava, teve uma súbita vertigem.

Na empresa, Raffaello estava preocupado com a onda de boatos que falavam sobre possíveis cortes. Segundo os boatos, que começaram na matriz, os cortes eram para os salários mais altos. Raffaello encaixava-se na situação.

Luzia resolveu fazer um check-up. Com quarenta e sete anos, não podia brincar com a saúde! Não precisou de muitos exames para receber o diagnóstico. Estava grávida!

Com muito tato, contou para Raffaello. Não tinha tato que desse jeito! Raffaello desesperou-se e por maior que fosse o esforço, não conseguia disfarçar sua decepção e preocupação. Lembrou-se da onda de boatos.

Com a gravidez de risco, Luzia precisava de acompanhamento constante, e Raffaello, a cada dia mais, dedicava-se totalmente à empresa, tentando escapar do antigo boato, que acabou tornando-se realidade.

O terceiro filho, uma menina, nasceu: Rafaela. No dia seguinte, nasceu um desempregado: Raffaello.

Luzia acalmou o coração do esposo dizendo que com a experiência que ele tinha, conseguiria uma nova colocação com facilidade.

Procurou head-hunters, empresas de recolocação e o escambau. A idade, cinquenta anos, era um dos impedimentos; o antigo salário era outro.

Com os filhos próximos de ingressar na universidade e com um bebê para cuidar, a poupança acumulada não iria durar muito tempo.

Luzia decidiu procurar emprego e Raffaello, ainda que contra, achou que poderia ser uma saída. O único senão, era pra quem cuidaria do bebê. Decidiram que enquanto um saía, o outro ficaria em casa.

O início foi contrastante. Luzia empolgada com a ideia e Raffaello desenhando um futuro desanimador.

Enquanto procurava uma colocação, Luzia decidiu apresentar seu romance, já terminado, para diversas editoras. “Quem sabe?” — pensava ela.

Em casa, Raffaello via-se às voltas com fraldas, mamadeiras, banhos e papinhas. Para economizar, decidiram não contratar uma babá.

Luzia conseguiu ser contratada por uma editora, que estava iniciando, para atuar no departamento de marketing. Pronto! O cenário ficou definido e Raffaello, desesperado com a nova situação. Seria sustentado pela esposa!

Luzia agia diferente. Chegava em casa e queria contar tudo para o marido. Raffaello escutava e, cada vez, afundava mais.

O tempo passava e Raffaello não se conformava.

Quando Rafaela estava com um ano e meio, uma mudança começou a acontecer. Ela disse “papai”! Foi uma alegria diferente que ele sentiu, uma emoção que não era comparável com nenhuma que já tivesse sentido. Comprou uma garrafa de champanhe para comemorar com a esposa, quando ela chegasse.

Naquela noite, Luzia não chegou na hora habitual. Nove horas, dez horas, e nada. Chegou às 23h.

Raffaello não quis saber se o trabalho exigiu ou qualquer outro motivo. Estava fulo e achava-se com razão! Não lembrou das inúmeras vezes que o mesmo aconteceu com ele. Nessas horas, toda a educação patriarcal que recebeu, veio à tona.

Ter que dar satisfação para pedir dinheiro à esposa, ainda que não fosse cobrado para agir assim; não poder sair no final do dia para o happy hour, eram situações “constrangedoras”. Ele, que tanto falava sobre enfrentar as mudanças, não conseguia enfrentá-las agora.

No dia seguinte, Luzia contou que o atraso aconteceu porque a editora resolveu publicar o seu livro.

— Que livro?

— O que eu escrevi nas horas que ficava só e quando você chegava tarde.

— Bom. — Raffaello sentiu a alfinetada. — Por que nunca me contou?

— Você nunca se interessou!

— Agora estou interessado. Posso lê-lo?

Luzia entregou o texto e, já ia saindo, quando Raffaello contou que a menina tinha falado papai. Disse isso com um certo gosto de vingança e percebeu uma lampejo de ciúmes na esposa.

Resolveram sair à noite para comemorar e colocar em dia uma conversa, que há muito estava sendo adiado.

Hoje, Rafaela já está com seis anos. Raffaello continua como “dono de casa”, mas consegue, uma vez ou outra, fazer uma assessoria ou uma consultoria. O livro de Luzia não foi um sucesso que permitisse seguir a profissão de escritora mas, com seu trabalho, chegou ao cargo de gerente de marketing na empresa.

Os dois entenderam que a vida deles tinha que ser totalmente compartilhada. Perceberam que os problemas de trabalho não são, simplesmente, deixados no trabalho, assim como os problemas domésticos não ficam aguardando em casa. Compreenderam que a atuação de um, é tão importante quanto à do outro. Hoje eles têm a consciência de que arestas sempre haverá e que somente o diálogo, de peito aberto, poderá apará-las.

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